19 de Fevereiro de 2015
"A minha principal objecção ao cinema é esta: parece-me que ver fotografias a um ritmo de 24 por segundo é um exagero.
Acaba por não se ver nenhuma fotografia como deve ser. A única
ocasião em que o visionamento de 24 fotografias por segundo se justifica
é quando amigos pretendem mostrar-nos os seus álbuns de casamento ou de
férias. Nessas alturas, suspiro pelo cinematógrafo. Ao que parece, hoje
sou o único a achar enjoativas estas sessões de exibição de fotografias
da vida pessoal.
O mundo mudou muito. No meu tempo, contemplar fotografias de amigos
era considerado um aborrecimento. Hoje, subscrevem-se contas de
instagram para poder apreciar os pés de uma amiga à beira de uma
piscina, o gato de um colega dormindo, ou o aspecto da sobremesa que um
amigo se prepara para comer. As fotos de outrora, sendo fastidiosas,
eram, apesar de tudo, menos triviais. Havia amigos junto de monumentos,
defronte de catedrais, perto de animais selvagens. Não ocorria a
ninguém, regressado de férias, dizer aos amigos: "Olha que giro, aqui
estão os pés da Clotilde junto à piscina do hotel." Ou: "Temos agora uma
foto de um prato de arroz-doce que o Mário comeu." Hoje, as pessoas
procuram fotos destas. Ninguém as obriga a vê-las. São elas que buscam
retratos de pés alheios. Algo se passa com a humanidade.
De todas as fotografias contemporâneas, a mais perigosa é a selfie
ou, em português, a propriazinha. A selfie é o equivalente moderno da
PIDE. Também persegue, tortura e mata. A PIDE contava com umas dezenas
de inspectores pouco espertos e alguns bufos diligentes. As selfies
contam com milhões de utilizadores pouco espertos e o facebook, o
instagram e o twitter. Uma selfie, para os meus leitores do século XX, é
uma fotografia que uma pessoa tira a si mesma, em geral com um
telefone. A PIDE, para os meus leitores do século XXI, era a polícia
política do Estado Novo. Há quem morra a tirar selfies em posições
perigosas.
Há quem seja torturado durante anos pela memória de uma selfie
irreflectida. Cristiano Ronaldo está a ser perseguido por umas selfies
tiradas na sua festa de aniversário.
Há selfies, belfies (fotografias do próprio rabo) e felfies
(fotografias do próprio junto de animais de quinta). Além da pulsão de
vida e da pulsão de morte, é também muito poderosa a pulsão de publicar
auto-retratos.
Freud estava distraído provavelmente, a fotografar os próprios pés junto de uma piscina".
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